Fotos: Marcelino Silva / Divulgação / Site Canais de Santos
Graças à genialidade e capacidade de planejamento urbano do engenheiro sanitarista Saturnino de Brito, a Cidade ocupa posição privilegiada na área de saneamento básico no País, mas a expansão do Município não impediu a ocorrência de problemas no sistema sanitário da Cidade, que ainda carece de melhorias
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Por Marcelino Silva
O sistema de saneamento básico de Santos está dividido em três grandes ciclos. O primeiro deles foi impulsionado por Francisco Saturnino Rodrigues de Brito. Nascido em 1864, na Fazenda Velha, no município de Campos (RJ), o engenheiro foi responsável em projetar a higiene sanitária de vários estados e cidades brasileiras. Em 1903, o Governo de São Paulo organizou a Comissão de Saneamento de Santos, dirigida até 1905 pelo engenheiro José Pereira Rebouças, quando Saturnino de Brito assumiu o posto.
De 1890 a 1904, perto de 26 mil pessoas morreram por epidemias de febre amarela, febre tifóide, malária, varíola e peste bubônica. A tragédia atingiu mais que a metade da população santista, que era de 45 mil habitantes. As tripulações dos navios não desembarcavam na Cidade, tamanho era o medo de contrair doenças. O cais esteve perto de ser fechado e ficou conhecido como o Porto Maldito no início do século 20. A partir de 1905, o sanitarista realizou minucioso estudo sobre as condições de higiene em Santos e elaborou um projeto para solucionar os problemas de drenagem e coleta de esgotos.
Em 25 de abril de 1912 foi inaugurado o sistema de esgotos e de águas pluviais de Santos, considerado o mais avançado do Brasil na época. Ele era composto por 66 quilômetros de coletores e 15 de emissários, 692 poços de visitas, 10 estações elevatórias, uma usina terminal e uma ponte suspensa, a Ponte Pensil. Ela foi concluída em 1914 para a travessia da tubulação que levava o esgoto de Santos e São Vicente até Praia Grande, onde era disposto ao mar.
Pioneirismo – Inédito no País, o projeto obteve repercussão internacional e fez com que Saturnino fosse proclamado o Patrono da Engenharia Sanitária do Brasil. O engenheiro também construiu o principal sistema de drenagem superficial, com quatro galerias e 9,5 quilômetros de canais (1 ao 6) que escoavam as águas dos bairros santistas. O Canal 7 foi o único que não fez parte de suas obras. O trabalho livrou a Cidade das epidemias e a colocou em definitivo na rota do comércio mundial, além de colaborar com a famosa qualidade de vida existente até hoje.
Antes mesmo de serem habitadas, regiões próximas às praias (Zona Leste) já tinham seus projetos de urbanização e esgotamento sanitário colocados no papel pelo engenheiro. “Coisas foram modificadas, mas muitos sistemas ainda estão em uso. Atualmente, projetamos obras sanitárias com 30 anos de capacidade. Saturnino conseguiu fazer algo com mais de 100 anos de eficiência. Era um homem que pensava à frente do seu tempo”, diz Reynaldo Eduardo Young Ribeiro, sanitarista e superintendente regional da Sabesp.
Numa época onde não se falava em preservação do Meio Ambiente, Saturnino de Brito deixou grande legado ambiental. Sua vasta obra, compilada em 23 volumes, e seus processos técnicos de saneamento foram adotados por engenheiros sanitaristas da França, Inglaterra e Estados Unidos. Ele faleceu em Pelotas (RS), em 10 de março de 1929, quando inspecionava os serviços de construção de uma nova rede de águas e esgotos no município gaúcho.
Abastecimento – A Cidade não possui manancial próprio para captação de água. A ETA 1 Pilões (Estação de Tratamento de Água) de Cubatão é a mais antiga e foi a primeira a servir os municípios vizinhos. Ela foi construída durante a concessão da empresa canadense The City of Santos Improv. Co. e conseguia produzir até 600 litros por segundo de água tratada. Até 1930, abasteceu Santos sem nenhuma alteração, mas as chuvas levavam terra e vegetação da Serra do Mar, alterando a qualidade da água. Era preciso cortar o abastecimento por causa das constantes manutenções.
Ribeiro explica que a partir da década de 60, obras importantes marcaram o segundo ciclo do saneamento na Cidade. “Em 1963 entra em operação a ETA 3, também em Cubatão, com capacidade de produzir mil litros por segundo. Em 1969, sua capacidade foi duplicada com a construção de outra etapa do projeto. Após reforma geral em 1985, a capacidade da estação foi para 4500 litros por segundo. Todo este sistema oferece água tratada em 100% dos lares santistas”.
Emissário – Depois do legado deixado por Saturnino de Brito, o crescimento populacional, o turismo e a projeção das demandas futuras obrigaram novas obras de saneamento básico na segunda metade do século 20. Em 1973 foi fundada a Sabesp. Junto com ela, surgiu o Sistema Integrado de Esgotamento Sanitário de Santos e São Vicente. Ele é composto por quilômetros de interceptor oceânico sob as praias de ambas as cidades, redes coletoras, estações elevatórias, ligações domiciliares e emissários de recalque.
Essa estrutura leva os dejetos até a Estação de Pré-Condicionamento de Esgotos (EPC), no José Menino. Nela, os efluentes são tratados com a peneiração dos resíduos sólidos, retirada de areia e recebem adição de cloro. O destino é o Emissário Submarino. Inaugurado em 1978, ele tem capacidade de vazão para 3500 litros por segundo de esgoto sanitário. Com 1,75 metros de diâmetro interno e quatro quilômetros de extensão no sentido norte-sul, sua função é lançar o material na Baía de Santos, nas proximidades de Itaipu.
Este sistema é responsável por coletar, tratar e dispor 98% dos efluentes domésticos dos santistas. Os 2% de esgotos não tratados são de áreas não urbanizadas nos morros, na Zona Noroeste e na Área Continental. “A poluição das praias está relacionada com essas regiões. Quando forem regularizadas, teremos 100% do saneamento básico concluído em Santos. O emissário desafogou o sistema sanitário da Ilha de São Vicente e iniciou o processo de recuperação da balneabilidade. Hoje, podemos dizer que Santos é um dos municípios mais bem saneados do País”, defende o sanitarista.
Onda Limpa – O superintendente considera o terceiro ciclo sanitário da região. Para ele, a preservação do Meio Ambiente substituiu o padrão sanitário neste projeto. “Hoje, a companhia está focada em soluções ambientais. É por isso que vamos investir R$ 1,23 bilhão na melhoria do saneamento básico e da qualidade de vida da Baixada Santista. Serão 82 praias beneficiadas, distribuída em 162 quilômetros de extensão. A população atendida pode chegar a três milhões de pessoas na temporada de verão”.
Em Santos, as intervenções do Onda Limpa vão até 2010. As principais são a ampliação da capacidade da EPC, que passará a tratar 5300 litros por segundo de esgoto, a implantação de um novo Interceptor Rebouças com 2200 metros de extensão, na Avenida Francisco Glicério, e o prolongamento do trecho aquático do Emissário Submarino. Ele ganhará mais 400 metros, passando a ter 4,4 quilômetros de extensão. Também receberá novos difusores na boca da tubulação. Eles são como chaminés em formato de grelhas e são responsáveis em expelir e dispersar o esgoto para a superfície do oceano.
Segundo Ribeiro, o IPT (Instituto de Pesquisa Tecnológicas da USP) revisou todo o projeto do emissário e aplicou tecnologia aos novos difusores e à extensão da tubulação. “O projeto está aferido pelos órgãos ambientais e a Sabesp cumpri as exigências no estudo das marés e da vida marinha. Hoje, o emissário está isento de qualquer influência na poluição das praias. Depois de concluídas, as obras serão monitoradas e vão garantir saneamento ambiental por mais 30 anos em Santos. Isso é uma exigência do investidor, o JBIC (Japan Bank for International Cooperation)”, garante o superintendente.
Difícil, mas não IMPOSSÍVEL
“A qualidade das praias de Santos é grave e a solução do problema não será encontrada em curto prazo. É cada vez mais difícil reverter o quadro, mas é possível com tempo, educação e investimentos”. As declarações são do professor André Luiz Belém. Mestre em Oceanografia Biológica e com pós-doutorado em Hidrometria Estuarina, o oceanógrafo é considerado um dos principais especialistas em estuários no Brasil. Para ele, a sujeira é provocada por diferentes fontes poluidoras, o que dificulta a descontaminação da orla.
Por mais de cinco anos, sua equipe acompanhou a situação do Canal do Estuário, das praias e da Baía de Santos. Após a releitura dos relatórios da Cetesb, o trabalho foi focado longe das estações de amostragem da Companhia. O estudo analisou a água e os sedimentos do fundo do mar, retirados em diferentes pontos de coleta. Também foram considerados fatores como toxinas, nutrientes, oxigênio e material orgânico. “Os índices de poluição estão relacionados com a ocupação populacional destas áreas”, revela.
Pontos críticos – As análises isentam as indústrias de Cubatão e o Emissário Submarino como fontes atuais de poluição. As favelas da margem esquerda do Porto, os canais de drenagem pluvial e as regiões do Terminal de Pesca de Santos (TPS) e da Fortaleza da Barra são os mais graves. Somente nas palafitas de Vicente de Carvalho, o material orgânico extrapola os níveis permitidos. “Além dos coliformes fecais, retiramos sacos, garrafas, aparelhos eletrônicos, pilhas e todo o imaginário do fundo do canal”.
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As proximidades do TPS e do Ferry Boat, o oceanógrafo revelou surpresas negativas. Foram coletadas estopas sujas de graxa, filtros de óleo de motor e resíduos oriundos de material detergente, o que indica a lavagem e manutenção de equipamentos. O fluxo de embarcações na região também destaca outra preocupação do pesquisador. “Apesar das normas, a maioria dos barcos não tratam seus esgotos, despejando diretamente no mar. O correto seria descarregar os efluentes nas marinas e providenciar a destinação correta”.
Em 2007, as pesquisas também revelaram uma espécie de lama fluída que abriga a maioria das toxinas. Ela fica em movimento no fundo do Estuário e se concentra em maior quantidade numa vala localizada em frente a Fortaleza da Barra. “Dependendo das correntes marinhas, ela pode contaminar as praias. Todos estes pontos geram resíduos químicos, orgânicos e metais pesados na água. Ocupações irregulares nos mangues de São Vicente e da Zona Noroeste também ajudam nesta poluição”, lamenta o professor.
Canais – Projetados com visão de futuro e responsáveis pela higiene sanitária no passado, fazem papel de herói e vilão no presente. Livram a Cidade das enchentes, mas colaboram em grande parte com a poluição das praias. “Apesar da ótima limpeza urbana, a Cidade cresce e a sujeira também. São galhos de arvores, esgotos irregulares, resíduos de lavagem de carros, bitucas de cigarros e outras coisas que os canais levam às praias com as fortes chuvas”.
Seus estudos mostram que quando as comportas dos canais são abertas, uma mancha de poluentes atinge um raio de 100 metros ao desembocar no oceano. Levando em conta todos os canais de Santos, praticamente toda a orla fica poluída e imprópria para o banho. “Se não chover e dependendo das marés, a praia fica limpa depois de 15 dias. As ondas ajudam a purificar novamente a água do mar. A saída seria aprofundar os canais ou aumentar o interceptor que leva as águas pluviais para a EPC. Mesmo assim, não sei se o sistema iria suportar algumas enxurradas. A melhor solução ainda é estudar”.
Alerta – Ele concorda com as melhorias do Programa Onda Limpa, mas faz críticas ao projeto. “Do ponto de vista da engenharia, o emissário cumpre seu papel legal. O prolongamento da tubulação será bom, pois a área de hoje está esgotada. Quanto mais longe o esgoto for lançado, melhor para as praias. Mas defendo o monitoramento ambiental e o estudo hidrodinâmico das ondas na sua rotina de funcionamento. É raro de acontecer, mas em caso de ressacas marinhas, os poluentes podem atingir a orla santista”.
Durantes as pesquisas, o oceanógrafo passou 24 horas sobre a boca do emissário. Ele analisou o cheiro, os peixes e a disposição dos efluentes em situações distintas. “Existem emissários que são monitorados por bóias eletrônicas. Elas atualizam informações em tempo real. Sou a favor da divulgação destes índices, como é feito com a qualidade das praias. Assim, a população e as autoridades teriam mais cuidado. Hoje, a nossa consciência ambiental termina quando a água sai pelo ralo de casa”.
O professor explica que o estuário santista é composto pelos rios da região, canal do Porto, praias e Baía de Santos. Ainda lembra que este sistema está cercado por Áreas de Proteção Ambiental (APA), como a Serra do Mar e os parques Xixová-Japuí, Forte dos Andradas e Laje de Santos. “Nenhuma cidade da Baixada Santista obteve o selo verde do governo estadual. Só iremos minimizar os impactos ambientais destas áreas com ações e gestão integrada do Estado, municípios, União e iniciativa privada”.
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Com outros oceanógrafos de Santos, o pesquisador fundou a ONG Observatório Oceanográfico. Sua intenção é realizar estudos focados nos ambientes marinhos e promover a preservação destes ecossistemas. “Ainda estamos engatinhando, mas estamos fortes na proposta de difundir o conhecimento oceanográfico para a sociedade”, conclui Belém.